textos do catálogo
Retematizar o Duplo
Carlos Vidal

Percorrendo as sucessivas definições e explicações (onde estas, muitas vezes, suspendem, clarificam e desmistificam as correspondentes definições anteriores) de Clement Greenberg dirigidas à especificidade das várias artes e suas disciplinas – e Greenberg tratou este assunto de forma sistemática e desassombrada -, somos levados a pensar que a associação da especificidade disciplinar àquilo que a mesma disciplina encerra como distintivo ou, na terminologia greenberguiana, "puro", é tão-somente (e é tudo o que pode ser) uma ilusão útil. E aí é óbvio que o próprio conceito de "especificidade" é também ele uma ilusão - embora o seu uso seja ilusório, ele é consciente, tal advindo da sua utilidade e necessidade (ou seja, inevitabilidade).
Assim, toda e qualquer definição de arte, ou de disciplina estética associada à precisão de um tempo histórico determinado (no caso de Greenherg, vemos que a especificidade da pintura aparece ligada à da arte moderna e esta de todo contribui para uma correlativa definição de Modernidade) é uma ilusão acrescida da sua utilidade conceptual - assumindo o crítico a postura de um inventor de conceitos. Noutros termos, diremos que tal ilusão (que acaba por ser sempre uma representação) é aquilo que de mais próximo fabricamos da verdade, ou melhor, a consciência de que em arte trabalhamos com invenções e criações fantasmagóricas? -- de conceitos é tanto mais eficaz quanto profunda for a autoconsciência dessa mesma ilusão. Um jogo em que os lances se situam entre a ludicidade, a ironia e a dramaticidade trágica.
A definição da arte é uma promessa iludida a que não podemos deixar de recorrer (nem à promessa nem à ilusão, dir-se-á); donde, a chamada (e a Greenberg associada) auto-reflexividade da arte e das suas disciplinas - que considerámos a "greenberguiana" definição da "arte moderna" -- é antes a autoconsciência dessa auto-reflexividade enquanto ilusão útil. Tal se aplica à pintura, à música, à poesia e à escultura. E note-se que embora Greenberg surja principalmente ligado aos problemas da pintura, a interpelação dos espaços da poesia e da escultura é-lhe imediata: pelo menos desde que se interessou por redefinir a polémica Lessing (com o seu estudo Laoconte) versus Winckelmann, no século XVII, em torno da especificidade e dos factores distintivos dessas disciplinas. Recorde-se que para Winckelmann a arte deveria ser sempre idealizada e serena (por isso elogiava o escultor do conhecido "Laoconte", e censurava Virgílio por, no 2° Canto da Eneida, descrever a mesma cena com um terrível clamor). Diversamente, para Lessing, era o meio (como, parcialmente, em Greenberg) que determinava as características da obra: o seu pathos, a sua serenidade, beleza, etc.
Pontuando então a enfatizada equivalência (que contrariaremos posteriormente, e uma vez mais com Greenberg) entre arte moderna = Modernidade = especificidade = "pureza" = auto-reflexividade, escreveria Greenberg em "Modernist Painting" (1960): “A civilização ocidental não foi a primeira a caminhar em redor de si mesma para questionar os seus próprios fundamentos, mas foi a civilização que mais longe se empenhou nessa tarefa. Eu identifico o Modernismo com a intensificação, ou mesmo exacerbação, desta tendência autocrítica iniciada na filosofia de Kant. Na medida em que foi o primeiro a criticar os meios do próprio criticismo, vejo em Kant o primeiro modernista. (...) Evidenciou-se desde logo que a área exclusiva e própria de competência de cada arte coincidia com tudo o que era exclusivo da natureza dos seus meios. Tornou-se tarefa da autocrítica eliminar dos efeitos de cada arte todo e qualquer efeito que, possivelmente, pudesse vir emprestado dos meios, ou pelos meios, de qualquer outra arte. Por conseguinte, cada arte deveria tornar-se 'pura', e em sua 'pureza' encontrar a garantia dos seus padrões de qualidade e independência”.
Esta equivalência entre arte e natureza dos seus meios tornou-se um dos statements mais polemizados de Greenberg, a que normalmente se acrescenta -- como lugar central deste “formalismo” -- o exercício do "juízo de valor". Contudo, o enunciado redunda em precipitada simplificação: trata-se antes de uma leitura em jeito de amputação, quer do texto de onde provém, quer da globalidade complexa da obra do seu autor. E, por vezes mesmo, prosseguindo esta redutora consideração, vamos encontrar no dito "formalismo", denominado de "greenberguiano", uma matriz de toda a arte conceptual e do minimalismo.
Assim: a defesa da planitude ("flatness") como resultado da colagem entre a pintura e a natureza dos seus meios, transformá-la-ia numa realidade objectual. Ou seja, um objecto (neste caso, a tela) que tivesse deixado de obedecer ou se reger por uma representacionalidade, não forçosamente antropomórfica ou relacional, para se desreferencializar de qualquer exterioridade, seria um objecto entre os outros objectos - a sua objectualidade viria da sua auto-reflexividade enquanto existência autosuficiente. Estaríamos perante o caso de Frank Stella que materializara a suposta "flatness" de Greenberg numa superfície fisicamente inerte, isto é, num "objecto" e inexpressiva coisa tridimensional. Donald Judd emergiria daqui com a sua classificação de "objecto específico" -- algo que não é da ordem da escultura ou da pintura. Assim sendo, a arte é não propriamente um objecto específico ou transcendental (puro e imaterial tal como parece querer afirmar-se desde as pinturas de Ad Reinhardt), mas antes um "objecto genérico". E o que é que distinguiria depois a arte (pictórica) de qualquer outra coisa? Para Kosuth esse seria um problema relativamente simples - é a linguagem, ou antes, o statement: é esta a essência do conceptualismo linguístico derivativo de Duchamp (a que Buchloh chamará de estética administrativa).
Passa obviamente por aqui o estatuto do objecto no minimalismo, por esta "genericidade" que faz de uma "pura presença" (a "presentness" de que fala criticamente Greenberg) uma teatralidade (Michael Fried) na qual toda e qualquer configuração formal é já desde o "início" um objecto. Ora, num lugar em que a configuração e a forma são objectos, podemos acrescentar que se pretende pôr em cena a "pura" objectualidade, a objectualidade que não depende de nada a não ser de si própria (o que constitui uma outra abordagem à auto-reflexividade).
Se é certo, portanto, que estas teses são fundadoras do minimalismo e de um renovado entendimento do "sistema dos objectos", não é de todo afirmativo que tal provenha de Greenberg - que aliás criticou esta "nova objectualidade" como algo que se foi acercando do espaço da "não-arte", precisamente o espaço da teatralidade tridimensional: ora se uma pintura, por muito "má" que ela seja, nunca aborda esta tridimensionalidade, tal "perigo" está reservado para a escultura. Entretanto, onde a "pureza greenberguiana" se afasta de Judd é no seu consciente carácter de limiar, ou fronteira de impossibilidade (que é o umbral que assinala que a possibilidade é a ilusão): diz Greenberg que o limiar de definição de uma disciplina é a oportunidade de um exercício auto-crítico; como vimos, igualmente, a "pureza" é uma ilusão, mas útil - e daí nasce como que uma ferramenta a utilizar proficientemente: na junção da consciência com a ilusão. Além do mais, também a definição de tridimensão sofre em Greenberg uma pequena-grande nuance. Diz o crítico que a tridimensão é uma inevitabilidade da / na pintura: de facto, qualquer loque, pincelada, gesto provoca na superfície plana da tela uma tridimensionalidade óptica.
E aqui somos chegados às obras iniciais de Rui Macedo, José Eduardo Marques, Jorge Lancinha e José Lourenço, as que atravessaram os seus períodos de formação escolar (feita pelos autores, a quatro, num misto de amizade e profunda cumplicidade plástica, até mesmo no que de mais distintivo e contraditório pudemos testemunhar), e culminaram na exposição "3/27" nesta -.resma Galeria Ara em 1998. E somos chegados de que modo? Em primeiro lugar, ao nos falar de uma tridimensionalidade óptica (fisicamente bidimensional, claro) e de uma tridimensionalidade teatral dependente duma restritiva "presentness", Greenberg leva-nos para uma definição híbrida (antropomórfica ?) de tridimensão, o que o lança para longe da matriz minimalista. Ora enquanto a tridimensão teatral do minimalismo depende de uma auto-referencial "pura presença ", a que testemunhamos nas obras pictórico-escultóricas de Marques, Lancinha, Lourenço e Macedo, ainda que teatral, é algo a que se somará uma narratividade de tipo literário (embora fragmentária), literariedade posteriormente simplificada e direccionada pelo parentesco destas esculturas de 1998 com determinados objectos de uso quotidiano como tambores, armadilhas de pássaros, cálices, tubagens, caixas de variadas formas e dimensões, que os autores descrevem através de materiais e configurações que querem simbolizar, simbolizando desde logo em potência. Por exemplo, os tambores e as armadilhas de pássaros são metáforas de aprisionamento tanto quanto do espaço-lugar em que a escultura se cruza com a pintura em curiosas linhas dialécticas onde se indefinem o interior e o exterior das formas. Espacializando a cor e a sua relativa planitude, cenografando o espaço (que é um modo de o bidimensionalizar), sublimando planitude e espacialização num processo de simbolização.
Enquanto a teatralidade de Judd pretende alcançar um "exterior" à estética, a teatralilidade de muitos dos objectos dos nossos quatro autores intenta hibridizar a pintura e a escultura dentro da estética e das suas vias conhecidas de simbolização, de que a mais imediata é aquela que postula contrariar os materiais frios e industriais em diverso simbolismo.
Se em determinado momento Greenberg nos fala de uma bidimensional tridimensionalidade óptica, nas esculturas-pinturas de Lancinha, Macedo, Marques e Lourenço, podemos ler a existência de uma bidimensionalidade fortemente pictórica (formal e cromaticamente) desta feita no seio da tridimensionalidade. Acontece que, depois de 1998, os nossos autores vão progressivamente abandonando esta hibridação bi-tridimensão, pintura-escultura, não para aceder a uma maior "pureza" formal (supostamente adstrita à bidimensão), mas antes, e pelo contrário, para multiplicarem as hipóteses de existência da bidimensionalidade, a partir daí sob a estratégia da duplicação, que consideraremos o gérmen do problema da representação.
Falo de uma duplicação que é o gérmen da representação em vários sentidos: primeiro, observável no princípio formador da nossa consciência (embora esta seja um tema devedor de mecanismos inconscientes). Vejamos em Lacan: proferiu o psicanalista em 1936 -- partindo de terminologia desenvolvida por Henri Wallon -- uma conferência ("Le stade du miroir: théorie d'un moment structurant et génétique de la constitution de la réalité") em que o reconhecimento distintivo na criança da sua imagem do espelho é tido como uma "operação psíquica "fundamental para os processos de identidade pré-linguística. Em segundo lugar, e numa síntese algo apressada mas definida filosoficamente, a representação é uma duplicação que instaura um representante e um representado, num processo que pode ser de alienação (quando o representante se secundariza e apenas serve para reenviar para outra coisa), ou de "resgate" (quando não há reenvio e uma coisa é uma unidade consigo mesma). Uma outra estratégia se impõe: quando a representação sublinha o seu aquém da verdade e do representado, ou seja, quando a representação mostra o que a separa, porque ela assim o quer, do representado e da sua verdade (Giorgio Agamben dirá: «é importante que a representação se suspenda num instante anterior à verdade; e apenas é verdadeira a representação que representa igualmente a distância que a separa da verdade»).
É este universo de múltiplas facetas duplicantes que agora habitam as obras de Rui Macedo, Lancinha, Lourenço e José Marques. É aliás interessante verificar como os quatro, de modos muito diferenciados, fizeram a duplicação suceder à anterior hibridação (formal/simbólico, escultórico / pictórico), e atente-se: dentro do mesmo medium -- a pintura. E foi dentro do mesmo medium, paradoxalmente, que adquiriram entre todos uma acrescida individuação se comparada com as aparentemente mais livres abordagens ao espaço tridimensional, ao espaço tout court. Representar a representação a representar-se é aliás um pertinente, creio eu, lei-motiv para os trabalhos mais recentes dos quatro. Cada um proporá esta distanciação / duplicação de forma muito distinta do seu colega.
Macedo compõe um universo teatral através dos seus motivos orgânicos e vegetalistas: muitos destes seus motivos orgânicos são vistos entre transparências e sobreposições (embora mais evidentes nos óleos sobre tela do que nos pastéis sobre papel) a que podemos associar palcos e cenografias logradas em ocultações e desocultações; trata-se, de qualquer modo, de um naturalismo cerebralizado: um teatro da consciência. No caso de José Batista Marques tal duplicação é evidente desde a sua individual "Luminil Rex" (do presente ano): a apresentação das suas pinturas com referências alquímicas e mitológicas era acompanhada de três duratrans em caixas de luz (e por textos) onde o próprio autor (tratava-se de três auto-retratos, ou auto-representações assinadas por Vidal Bertazo) parecia contemplar-nos a contemplar as suas telas, também elas contempladas pelo seu autor (o seu principal espectador). O agente da representação (o autor) separava-se e analisava-observava as suas estratégias representacionais: e a palavra "estratégia" é aqui acertada, encerrando uma opção plástica.
Lancinha, por seu lado, mostrou-nos algumas pinturas assemelhadas a deltas de rios tal como os conhecemos desde as suas respectivas vistas aéreas: trata-se ainda do mecanismo da duplicação, este de mostrar a natureza de uma forma tão artificial quanto aquela que só é possibilitada pela sofisticada tecnologia do avião, do satélite ou da fotografia (ver ainda a horizontalidade da paisagem e de sua distância extrema aqui transformada em padrão vertical e tangível, apesar de pictorialmente imaterializado). Por fim como não ver a duplicação nas pinturas de José Lourenço através do forte contraste entre as frias arquitecturas, que formal e cromaticamente remetem para virtuais "paraísos computorizados" (instrumento que o autor usou recorrentemente ao tempo da produção dos últimos trabalhos) e as formas orgânicas e ameaçadoras que as povoam e desconstroem (teremos uma harmonia cromática computorizada oposta às formas orgânicas que a surpreendem; uma organicidade oposta a uma arquitectura "limpa" e geometrizada, etc). A duplicação aparece-nos então como um ponto de chegada que desenrolou e emancipou, digamos assim, a anterior hibridação, sendo de destacar a possibilidade desta duplicação-representação existir no restrito mas pulverizável e indefinido espaço da planitude da tela e da pintura figurativa. Sem subterfúgios.

19 de Julho, 2001

Quatro Linhas para Quatro
Carlos Carvalho

A utopia nunca foi, nem será, uma questão de moda. Nem a precariedade do instante a satisfação do sonho. Nem a travessia será a meta. Nenhuma água inundará o deserto. E Sísifo será sempre.

Talvez tudo se resuma a um rumor. Feito de ínfimos silêncios. Destas vozes: quatro. O sopro de algum fogo. A terra estalada no exacto ponto da semente. Ou da cigarra. Talvez o canto escorra pela tela, paredes meias com o frémito.

Aqui, talvez apenas o desafio de uma pequena vertente. A colina disponível para quatro linhas. Que, se de água forem, poderão chegar aonde chegarem. E levarão, quem sabe, sinais dos tempos: seixos da primitiva encosta. E muita sede.

Lisboa, 15 de Julho, 2001

críticas
Expresso
Lisboa 7 Agosto 2004
Ana Ruivo

A uni-los, primeiro, uma coincidência no tempo, o convívio gerado ao longo de um período de formação na sala 3/27 da ESBAL. Depois, a alusão a essa referência primeva, transversal aos caminhos entretanto seguidos por cada um, permanecendo, para lá da determinação de geografias ou cronologias, como marcação cíclica de um tempo capaz de converter o que poderia ser mera curiosidade num interessante momento de encontro e reflexão sobre questões que atravessam os trabalhos de José Batista Marques, José Lourenço, Rui Macedo e Jorge Lancinha, aqui apresentados pela terceira vez como colectivo. Distantes já dos primeiros passos dados na híbrida presença do objecto pictórico em intentada fuga aos seus limites (materiais, conceptuais), assumem os quatro artistas, plenamente e com maturidade acrescida, a bidimensionalidade do suporte, as contingências do meio em que operam, como profícuo terreno de experimentação do espaço e sua representação. Um espaço construído no intervalo entre o reconhecimento do que se vê e um território simbólico e subjectivo. Há, no conjunto de trabalhos sobre papel apresentado por J. Lourenço, a presença de uma forte urbanidade, de uma arquitectura de silhuetas geometrizadas nascidas sob o signo da negritude a par do recorte orgânico das sombras dos arbustos. Mas aquilo a que temos acesso é apenas uma visão fragmentária e asséptica de uma paisagem, onde as presenças só se resgatam na pontual e distante presença da luz. Essa ideia de tempo nenhum, é igualmente trabalhada por R. Macedo num funesto voo que transforma o horizonte em mira, através das nuvens ou por entre os ciprestes, para lá de uma quietude que à memória trás a Ilha dos Mortos, de A. Böcklin. Levando ao extremo a marcação do lugar como conceito simbólico, J. Lancinha constrói um conjunto de labirintos e mandalas que fazem dos seus quadros não apenas um território de experimentação da pintura mas igualmente uma reflexão de carácter ontológico sobre o lugar do homem no universo. Bem distinto é o trabalho apresentado por J. B. Marques, que parte da representação de um lugar definido, uma cidade no norte da Europa, para a transformar num jogo tão enganador quanto sedutor de cenográficas perspectivas.

Jornal de Letras
Lisboa 21 Julho 2004
Rocha de Sousa

Este campo de trabalho, desde os anos sessenta, não tem cessado de crescer - um espaço de ideias e de produção dos jovens artistas, aberto cada vez mais à troca de informações, à procura de novas perspectivas de investigação e de desenvolvimento estético, lugar de lugares na dinâmica de outras presenças além da própria modernidade. Desta vez, quatro artistas plásticos reúnem-se na Galeria Ara, à semelhança do que fizeram em 1998, e procuram dar-se conta do trajecto efectuado ao longo deste tempo, as mudanças ocasionais, as mudanças por ordem da investigação, o confronto de ideias, o encontro de pontos de vista. Não se trata de um grupo organizado em volta de uma orientação teórica ou de uma afinidade técnico-formal. Cada autor tem a sua própria trajectória, embora esse princípio não se dissocie dos sinais do tempo que todos reflectem ou da realidade estética entretanto projectada no espaço do pensamento artístico.
As estruturas consolidadas pela galeria são especificamente, ou sobretudo, para autores que começam, por vezes «sem abrigo», e desenham «diários» fabulosos acerca da sua juventude em perda. Estamos quase no reino da metáfora, mas não de todo, diga-se a verdade: o suporte mecenático diversamente «contratado» pela galeria, aliás nos termos do mercado artístico e das bases iniciais de trabalho, tem dado assiduamente frutos seleccionáveis, aqui e nas feiras internacionais. Por muito que se avancem desconfianças quanto a este processo de recolha e expansão, sem levar em linha de conta os vazios, os jovens de talento cuja origem ou timidez mal chegam para bater às portas erradas, o certo é que, após graduações complicadas e havendo necessidade de um bom exercício identificador, muitos jovens artistas têm encontrado aqui, sem modas imperativas nem críticos orientadores, um cais possível, momentos de partida assinaláveis.

a inocência de novo, entre enigmas
Não tenho nenhuma razão para referir, no início destas notas, o caso de José Eduardo Batista Marques. É um autor cuja obra, em visita de «oficina», estava naturalmente exposta, recebendo a luz de uma alta janela - e o apelo da sua paisagem urbana abriu campo ao trabalho de registo fotográfico.
Vejo-o num outro tipo de composição, em 1998, também na mesma companhia, a quem Carlos Vidal incluía na «vocação materiológica» das obras de todos, recorrendo a um termo de Jean Fautrier e a um informalismo de hibridez relativa ao espaço pictórico e ao próprio comportamento das matérias (1). José Batista Marques, tentando achamentos mais libertos pela liberdade interna da Escola do que por uma convicção ideológica instalada, produzia objectos inúteis, indagava a madeira e os fios eléctricos, entre outras vias colonizantes mas aceitavelmente entendidas.
Mais tarde, em 2001, reunidos de novo estes autores, as obras apresentadas retomam ao universo da pintura em si, cada artista parece ter-se libertado dos alinhamentos técnicoformais assumidos na Escola, encontrando-se com a pesquisa de um antigo processo do fazer. Vidal, no texto do catálogo, anota que, posteriormente, estes pintores que ele seguiu em bons entrosamentos escolares, durante quatro anos, surgiram para a necessidade de simbolizar, «cruzamento último que pressupõe a presença da mão como agente daquilo que é apresentado e, ao mesmo tempo, uma determinada e heterodoxa religiosidade» (1). Do objecto sem nome, Batista Marques, dois anos depois, realiza uma pintura de palavras e rostos rasurados, como se tivesse voltado à infância para reacertar os caminhos - «DE SI-GNS OF NATURE: MOCHO», por exemplo, um sopro de iniciação notavelmente fingida.

a necessidade vitalizadora da mão
Aliás, Jorge Lancinha seguiu percursos idênticos: uma das suas peças de 1998, «You could stay here I» constituía-se (dentro de um certo desconforto bem conseguido) por matérias como o ferro, a madeira, vidro e algodão. A forma objectual poderia identificar-se, sem esforço, como um espelho de quarto, já incapaz de reflectir, e um suporte em baixo, como parelilipípedo, lugar onde o algodão, em excesso, evocava o tempo e as feridas da morte. Mas em 2001, Lancinha reentra na matéria plástica, explora formulações densas e quentes, fala-nos, como em «nebulosa 0001», de criações orgânicas, algo da proliferação da matéria e dos astros, ou talvez, espreitando pelo Hubble, a própria infinitude das nebulosas e das galáxias que todos os dias revelam novos fenómenos inexplicáveis.
Agora, em 2004, Jorge Lancinha, talvez manejando a matemática numa outra dimensão, produz padrões modulares, bem inventados no entrosamento, embora, de perto, a sensibilidade técnica da mão trabalhando sem meios rigorosos de apoio se faça sentir, palpitando numa geometria de labirinto.

outras revisitações
Rui Macedo apresentava em 1998 telas de grande formato, sombrias, cobertas por muros talvez sobrepostos, arquitecturas em fim de tarde, um resto de luz matinal no limite superior dos quadros. Estava-se perante uma proposição potencialmente muito rica, sem título e porventura desnecessariamente com  data . Mais tarde, o sonho da madrugada urbana, passa ao domínio de paisagens sub-aquáticas (ou talvez assim), exprimindo uma tecitura de seres elementares, um outro tipo de cidade - um mundo interior a que o artista pode chamar, num dos casos e sem grande deslize, «auto-retrato».
O lado conceptual que emergia de alguns dos trabalhos anteriores de Rui Macedo, serve, em 2004, para questionar espaços aparentemente opostos - um céu azul denso, bordado por nuvens opacificando-se atrás de um rectângulo onde, em tons quentes, se narram módulos tridimensionais. O homem desenvolve transparências modulares, vidros translúcidos com geometrias racionais, mas, neste caso, para as confrontar com a atmosfera revolta do habitat terreno donde nos chega quase tudo - o impulso das formas e a ideia de as transformar em utilidades quotidianas.
Mas não se trata apenas disso: módulo, arquitectura, espaço, desfocagem nevada, tudo isso articula uma das suas mais belas obras de hoje: um corredor entre muros, morrendo na perspectiva, e a cadência descendente de duas filas de ciprestes.
José Lourenço também indagou a formatação de objectos que sugerem partes de máquinas eléctricas, restos de impressoras, perfeições de uma funcionalidade desconhecida. «Prisão dos Sentidos» entrava nessa linha. O mistério desta realidade plástica, tocada de perto pela produção industrial contemporânea, deixa-nos aquém de referências concretas: identificamos a natureza das coisas mas a nossa percepção, fragmentada, cede à armadilha das formas. Lourenço é um dos mais coerentes pesquisadores deste grupo. «A floresta de nós mesmos», em 2001, reedita a ilusão da tridimesionalidade representada no espaço plano, uma arquitectura translúcida, oriental, com sombras chinesas nas paredes ou no interior, e na qual só podemos imaginar mesas baixíssimas e um silêncio de paisagem em volta.
Os trabalhos actuais de José Lourenço, em acrílica sobre papel, de grande rigor formal, mostram outras arquitecturas - arcos de óculos, reflexos nivelados, um azul serigráfico em torno de tudo.

(1) referência ao texto de Carlos Vidal, catálogo de 98, Ara, título: «Da matéria à matéria simbólica»